quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

A repetição da História

Não sei como, mas ainda consegui começar a ler o livro de memórias do Manuel Poppe, irmão do Lopes Cardoso que foi ministro da Agricultura e teve o nome amaldiçoado pelas paredes de Lisboa, antes do António Barreto, por causa da Reforma Agrária.
Não são grandes memórias, mas é um livro de grandes momentos, como aquele com quem me cruzei hoje, antes de ter a noite aprisionada, quando descobri que o João Gaspar Simões trabalhou de revisor na Imprensa Nacional, emendando provas, grande presença de espírito seguramente para quem haveria de ser um grande vulto na nossa crítica literária.
Vou na página 77. Ontem lembro-me de ter lido que ele estava convencido de que «para perceber poesia, era indispensável o sofrimento». Assim, «ante de começar a ler deprimia-me, esforçava-me por criar, dentro de mim, infelicidade», acrescenta, para que nos sintamos como se sentiu.
Não vou ter tempo de ler. Fica-me a recordação de ele, que viveu na Guarda, me ter trazido à memória o Dr. João Gomes. Conheci-o e à sua extensa biblioteca, quando ali cheguei, fardado de militar, um aspirante a oficial miliciano, contra-vontade no meio das campanhas «dinamização cultural», em vias de passar de bestial a besta, de «herói anti-fascista» a «vendido reformista». É isto a vida e a sua repetição. Uma longa história ou talvez a mesma História.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

Uma história portuguesa

O Francisco Teixeira da Mota escreveu um livro «Alves Reis, uma história portuguesa», editado pela Oficina do Livro.
Convidou-me para lhe apresentar o livro. Daqui a pouco fá-lo-ei. Escrevi este texto, para servir como cábula do que direi.


Sabem os juristas o que é uma burla.
Não é um crime pelo qual alguém se aproprie, embora possa haver apropriação; é um crime pelo qual alguém causa um dano, ao enganado ou a outro. Nisso, é parte deste mundo de lástimas em que nas Faculdades se ensina em volta do «bem jurídico» e nos tribunais se aturam os «males jurídicos», como ironizava ontem um amigo meu, ácido porque esperto, risonho porque irónico.
Mas o que torna a burla um crime atraente é, sobretudo, o facto de ser o crime das pessoas inteligentes. Diz o Código Penal de hoje que a burla concretiza-se através de um processo enganatório astucioso, como o Código Penal de 1886 dizia que se materializava pelo artifício fraudulento.
Ao contrário do ladrão, que pratica o furto apoderando-se de uma coisa, apreendendo-a, subtraindo-a, tendo que se mover, vulgar criatura, no mundo das coisas físicas e materiais, diversamente do que abusa da confiança, que entra na galeria imoral dos traidores, defraudando quem nele confiou, o burlão move-se no plano superior das ideias, usa da argúcia argumentativa, manipula o enredo discursivo, é mestre na arte da encenação, o engano é para ele um meio, o erro da sua vitima a vitória da sua inteligência.
No plano dos afectos, ele, o agente do crime é um amoroso, cortejador, longe da rudeza do gatuno, diferente da vilania do usurário, da malvadez congénita do extorsionário.
O burlão é um sedutor, perante o qual a vítima sente-se, consumado o acto, um idiota, um despeitado, ciumento face à urdidura a que se rendeu, enraivecido pelo desejo da vingança que aplaque a imagem de miséria intelectual com que fica de si mesmo.
Eis as palavras-chave em relação à burla: sedução e dano. Eis o caso Alves Reis.
A história é simples, na sua aparência: a reputada firma britânica Waterlow & Sons, tipografia especial, porque imprimia o mais valioso dos impressos, o papel-moeda, recebeu uma encomenda do Governo de Portugal, imprimir notas de quinhentos escudos, com a efígie Vasco da Gama.
Só que desta feita a encomenda tinha o seu «quê»: tratava-se de uma emissão duplicada, ou seja, com a mesma série numérica de uma emissão já em circulação.
Por ser assim, a encomenda era «secreta».
Para que Sir Wlilliam Alfred Waterlow, velho bulldog da praça financeira londrina, não desconfiasse, as notas em causa, a serem lançadas em circulação, sê-lo-iam no espaço restrito de Angola, pelo que, ao chegarem a Lisboa, ser-lhes-ia aposta a sobrecarga a óleo com o nome desta colónia do Ultramar.
Eis uma história já por si extraordinária: Londres honrou a encomenda, tendo tratado do negócio confidencial directamente com Artur Virgílio Alves Reis, portador de dois contratos forjados pelos quais era autorizado pelo Banco de Portugal a tratar do assunto com a casa impressora inglesa [continua aqui]

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

«Zé, eu não suporto mais isto!»

O Museu do Neo-Realismo expõe amanhã: «O desenho na obra de Dias Coelho». Militante comunista, entrou na clandestinidade em 1955, foi morto a tiro pela PIDE, em 19 de Dezembro de 1961. Escreveu a meias com sua mulher, Margarida Tengarrinha, um livro sobre a resistência.
«De todas as sementes confiadas à terra, é o sangue derramado pelos mártires que faz levantar as mais copiosas searas». A frase é sua, seu o sangue, nossa a memória esperançosa de que não haja sido em vão.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Sintomático

À procura de uns papéis que não encontrava e que teimava existirem, dei com uns apontamentos manuscritos tirados não sei de que livro do Vergílio Ferreira. Numa qualquer página 45 dizia ele que «o maior sintoma de decadência é vivermos à conta do que já fomos». No caso dele as coisas complicaram-se porque, tirando a «Aparição» que tornando-se livro escolar corre o risco de se tornar para as novas gerações um livro insuportável, a maior parte da sua obra está esgotada e não se reedita.Um destes dias encontrei no lugar inesperado de um tribunal quem tivesse lido a «Conta-Corrente», esse diário em duas séries que ele amaldiçoava escrever e escrevia com amor. Fiquei espantado. Nesse dia senti que a profissão não seca as almas, apenas torna ressequidas as que já chegam a elas empalhadas em vida.

domingo, 13 de janeiro de 2008

O sentimento do reflexo

Trouxe-os de Itália, os que encontrei, livros de Italo Calvino. Esta manhã de chuva peganhenta levei um deles comigo, a «Collezione di sabbia», por ser pequeno, por ser leve, caber-me na persistente pasta e poder fazer-me companhia, sem peso ou excesso de presença.
O título deve-se a quanto impressionou o autor, numa exposição de coleccionismo em Paris, ter-se deparado, de entre tão diversos objectos arrecadáveis, de selos a caricas, o trivial dos armazenistas açambarcadores do vulgar, catalogadores do acumulado, frascos de areia das mais diversas partes do mundo, diferente na textura, na consistência, na cor e na maciez, como se epiderme fosse cada uma da terra remota de onde proveio.
Cheguei agora a casa para escrever sobre o que li. Há no livro um capítulo sobre o Japão e neste um artigo em que se diz que viajar serve para reactivar o uso dos olhos, é uma leitura visual do mundo, ver assim o que não se via, distinguir o indistinto
Li e vi que o amor pela lua se confunde muitas vezes com o amor do seu reflexo.

sábado, 12 de janeiro de 2008

O eu falar de mim

Li-as durante a noite e consegui-o, as 262 páginas do livro de Maria Luísa Blanco, de «Conversas com António Lobo Antunes». Livro emprestado, folheado meticulosamente, está pronto para ser dado de volta, imensamente grato, ao seu dono.
A autora é espanhola e a edição original saíu em 2001. A Dom Quixote, agora deglutida pelo voraz grupo de Paes do Amaral, deu-o à estampa no ano seguinte, traduzido.
Não sei que estranha sensação invade ao penetrar-se nas intimidades de um escritor laureado, mesmo daqueles de quem se passou a gostar: saber-lhe dos amores e dos terrores, a ilusão da infância e o pavor da velhice, as obsessões familiares e a congénita solidão.
António Lobo Antunes nunca se sente só quando está sozinho; a solidão dorida nasce-lhe quando das convivências que lhe roubam o tempo para escrever.
Sabendo-o escritor, escusava de ter querido sabê-lo pessoa, ainda por cima, através do seu próprio verbo.
Foi assim, com esse sentimento de devassa que o surpreendi na banalidade de conversar sobre si, como se numa vulgar bisbilhotice de falar sobre os outros.
Terminei e concluo: prefiro lê-lo, mesmo quando não gosto, no discurso indirecto que nele parece, aliás, sempre directo; é que a auto-biografia, no seu caso, não explica, apenas justifica e pouco.
Salvou-me tê-lo visto, entrevistado por Mário Crespo, em transposição de discurso: «o Mário escreve», diz ele, como se não dissesse «eu escrevo». Extraordinário.

sábado, 5 de janeiro de 2008

A sabedoria da Rita

Há um amigo meu que nos últimos sete anos manda imprimir, a expensas próprias, um caderninho, de formato sempre igual, no qual compila textos que o marcaram durante o ano. Oferece-o sempre pelo Natal. No deste ano vem uma página dedicada a frases de crianças, como esta fantástica «há muitas coisas que a gente sabe e que as notas não dizem». É da Rita, com dez anos de imensa sabedoria.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2008

O mundo infinito dos livros

Deve ser seguramente da idade e do medo pavoroso da anorexia mental. Mas acho que já disse que me veio parar às mãos um livro chamadao «Libroterapia», que, editado em Itália, ostenta como subtítulo «Um viaggio nel mondo infinito dei libro, perché i ibri curano l'anima».
E porque deve ser seguramente da idade, abri no capítulo que se intitula a velhice cura-se lendo [«la vechhiaia si cura leggendo»], para me confortar, no que ao meu atraso cultural respeita, com a magnífica frase: «leggere in tarda età significa reccuperare il territorio dell'immaginario».
Transportado pelas asas da literatura, era, pois, uma vez...