sexta-feira, 30 de julho de 2010

A coçada batina e o seu lustro

Percebe-se que há hoje ainda um sector na sociedade portuguesa que tem no seu modo reticente de ser, na sua forma indirecta de se exprimir, na reserva dos sentimentos e na dissimulação das opiniões, os tiques do seminário frequentado e do seminário que abandonaram. São almas contidas em corpos fustigados. A masculinidade sobreviveu neles à amputação da libido, a humanidade resistiu à saturação da confissão auricular ouvida genuflexória até à náusea do horror.
São seres de impaciência recalcada. A danação dos pecadores é a sua forma de através das penitências alheias expiarem uma raiva que fingem ser piedade.
Notam-se pela liturgia, pelo esgar feito riso, pelas vestes talares, pelas profissões que permitem condenar.
«Tudo eu podia ser como seminarista, excepto o que não tivesse em conta o facto de o ser». Leio isto no estudo que Maria Almira Soares dedicou a Vergílio Ferreira, a quem a frase pertence. O estudo é sobre «O Excesso da Arte num Professor por Defeito».
«Quando se frequentava o seminário, era-se seminarista, fosse qual fosse o lugar e a circunstância», escreveu o autor da Manhã Submersa. Para a vida toda, Amen!.

quinta-feira, 29 de julho de 2010

A unidade do ser

Sabia que existia mas não o encontrava. Quando passava pelas livrarias, pelos alfarrabistas, pelas vendas ambulantes perguntava-me com os olhos mas ficavam cegos. Trouxe-o este fim de semana. Já é uma terceira edição. Trata de Fernando Pessoa. Mas não dos vários, distintos, diversos, heterónimos, mas sim e por isso se chama Um Fernando Pessoa. Se a aritmética de que Almada Negreiros fez arte, o 1+1=1, dá sentido e vida ao que é disperso e somatório e por isso imprecisão, ei-lo aqui, uno porque plúrimo e certo.
Comecei-o ontem, enquanto esperava o que não sabia ia ser uma última vez. Ao acaso li sobre Ricardo Reis. Ao chegar hoje a casa, vencidas as urgentes obrigações, que se incumpridas me tornam ainda menor, descobri que só tinha a obra em prosa atribuída a esse outro Pessoa pagão e tradutor. «Abomino a mentira porque é uma inexactidão», disse. E acrescentou «aos deuses peço só que me concedam o nada lhes pedir». Agostinho da Silva escreveu em 1959. Genialmente diferente.

domingo, 25 de julho de 2010

Às Sete no Sá Tortuga

Lê-se e uma pessoa sente-se transportada para o lugar. Não só o lugar acanhado dos quartos alugados, o telefone no corredor, os livros a esmo por onde há espaço para os arrumar, os quadros a aguardar uma parede livre para poderem ser pendurados. Sim o lugar sentimental em que se reclama solidão à companhia, o lugar dos biscates que dão para as contas por pagar e outras ficam por solver e sempre livros, e arte e culturae sobretudo humanidade.
Uma pessoa lê e sente a tristeza de quem se entristeceu e as esperanças que são a antecâmara da alegria e a vida a escorrer pelas páginas de um livro
Não é uma biografia é um relato de viagem. Luís Amorim Sousa viajou pela vida do poeta Alberto de Lacerda. A Assírio & Alvim editou.
Alberto «sabia que nem todos os que entravam no seu mundo eram dele residentes». Luís compreendeu-o amorosamente. O livro não é uma confidência, é um murmúrio de rememoração como uma prece.
Levei comigo o pequeno volume e li-o enquanto o autocarro da Mundial Turismo rumava para sul. Era sábado e a tarde prosseguia e com ele a minha leitura.
Regressei hoje na Rede Nacional de Expressos que é o mesmo um pouco menos melhorado. Ao chegar a Lisboa, há pouco, a história tinha terminado. Como sucede com todas as biografias quando já não há mais a dizer e a vida só sendo inventada para se poder contá-la.
Pedi à Liliana que me arranjasse mais para ler. Talvez um dia a fotobiografia, para já o Pajem Formidável dos Indícios, afinal, todos os livros quero eu dizer.

sábado, 17 de julho de 2010

Um segredo ardente

Há muitos ainda nas casas dos nossos pais. A maioria comprados pelas nossas mães. Os livros de Stefan Zweig´fizeram a sua época nos anos quarenta. A Editora Civilização traduziu-o quase todos. Austríaco saíu da Europa a caminho do exílio no Brasil. Morreu de tristeza e de pena pela sua Pátria ocupada pelo nazismo, suicidando-se com sua mulher no Brasil terra de futuro. A simpatia com que saudou esse País de acolhimento moveu contra ele as forças políticas que se opunham à ditadura então reinante. 
O modo como escrevia passou de moda. Escrita simples, fluente, apetecível leitura, a incidir sobre os meandros psicológicos das personagens, com compaixão e elegância mesmo quando sobre a sordidez. Conhecedor da alma humana, o autor de Amok trouxe-nos biografias que são de pessoas na pujança plena dos seus seres. Não mais me esquecerei do que escreveu sobre Nietzsche.
Acabei de ler esta noite Um segredo ardente.
É uma história de uma predação, o predador a seduzir o filho miúdo, corrompendo-o com a amizade, para alcançar a cedência da mãe. No final o amor triunfa sobre a luxúria, sofrido por entre mentiras, duplicidades, fidelidades traídas, carências.
Casada, Matilde - uma burguesa cujo nome uma só vez aflora na narrativa - vai cedendo ao insidioso barão austríaco. Ele «conhecia perfeitamene a sua incompatibilidade com a solidão. Não era pessoa com disposição para ficar só em frente de si próprio, e evitava, quando podia, esses encontros, porque não queria tomar conhecimento íntimo da sua pessoa». Ela «uma passional sem dúvida, mas bastante esperta para dissimular o seu temperamento através de uma melancolia cheia de distinção». Entre «um turbilhão de felicidade e de um infantil desespero» Edgar encontra nele o pai que falta e na mãe a mulher que descobre gostaria de ter.
A «ousadia do assalto» desenvolve-se neste ambiente. A renúncia aos desejos faz-se com lágrimas, magoada escolha «entre ser mãe ou ser mulher».